Caro Professor Aziz Nacib Ab’Sáber,
Recebi, com honra e interesse, as considerações que o senhor formulou no texto “Do Código Florestal para o Código da Biodiversidade”, a propósito do relatório que preparei na Comissão Especial da Câmara dos Deputados encarregada de analisar os 11 projetos que tratam de modificações do Código Florestal Brasileiro. É um truísmo reconhecer que em qualquer debate acerca dos cenários bióticos do Brasil sua palavra tem o peso da seriedade e o lastro do enorme conhecimento técnico de um estudioso que se distingue não só na Ciência como no engajamento nas lutas sociais do povo brasileiro. São motivos mais do que suficientes para aproveitar-se a oportunidade e banir a treva e introduzir a luz, expulsar a manipulação de dados e admitir a verdade dos fatos.
De imediato, convém esclarecer que não se aplicam a mim nem a meu relatório as observações quanto à suposta condição de “neófito” ou de que tenha favorecido “de modo simplório e ignorante os desejos patrimoniais de classes sociais que só pensam em seus interesses pessoais;” tampouco a de que recusei contribuições feitas “por pessoas competentes e bioeticamente sensíveis.”
Sabe o senhor que um parlamentar não precisa ser o especialista posto de antolhos nos assuntos sobre os quais legisla, como a um juiz não se pede que faça um curso de pós-gradução em Economia antes de julgar uma questão financeira levada ao tribunal. Acredito que o senhor caiu no enredo da “ilusão aristocrática” tão bem exposta pelo grande filósofo Álvaro Vieira Pinto, em seu livro Consciência e Realidade Nacional: “A eleição na democracia serve exatamente para refutar a ilusão aristocrática, que consiste em supor que são os melhores que fazem o melhor.” Quem faz o melhor, ao menos na democracia direta que defendemos, são os representantes que o povo elege, sem subjugar-se a guildas corporativas. O Congresso Nacional, cuja atividade desde muito alguns tentam limitar com a homologação dos especialistas a serviço de corporações e doutrinas particularistas, é o fórum legítimo e capaz de responder às necessidades de adequação do corpus legislativo à realidade objetiva de nossa formação social.
Ademais, raras vezes um projeto de lei foi antecedido de tantos debates, realizados democraticamente em 33 audiências públicas, em vários estados, e colheu opiniões tão diversificadas, representativas do espectro social, quanto este do Código Florestal. Foram ouvidos agricultores de todos os portes, diretamente ou por seus representantes, como a Contag; sindicalistas, ambientalistas, autoridades dedicadas à causa do desenvolvimento sustentável, das três esferas do Poder Público e, por certo, uma relação numerosa, que seria exaustivo nomear, de especialistas, sem dar crédito ao rótulo de “cientistas irrealistas.” A lista pormenorizada consta do relatório que tenho o prazer de a esta anexar. Por óbvio, o parecer do relator não acolheu, como não poderia acolher, de forma literal, as contribuições integrais desses técnicos, até por serem antagônicas, mas suas opiniões e informações decerto orientaram a elaboração do relatório final e os termos do projeto de lei que apresentamos.
Consolidou-se a partir dos estudos de técnicos deste quilate e da observação direta do estado do campo a nossa convicção de que o Código Florestal Brasileiro deve ser feito para a realidade factual do Brasil, e, assim, levar em conta a diversidade de biomas, das formas de produção e a variedade da propriedade da terra. Infelizmente, a copiosa legislação ambiental, que se confunde com a regulamentação da exploração de nossas riquezas naturais, a começar do solo, foi sendo exaustivamente promulgada em períodos antidemocráticos, agora tão exaltados, ou por medida provisória, de maneira que se distanciou de forma elitista e artificial da realidade do campo. Lamentavelmente, nem tudo o que os sábios de gabinete produzem é sabedoria, tampouco ciência, de vez que alguns estão sempre prontos a quererem mudar a realidade com conceitos, e na falta destes, com palavras vazias, lembrando-nos, como na observação do filósofo Karl Marx acerca de Proudhon, que a inexistência de fundamento “não impede que hoje em dia tal sabedoria grasse em certos círculos com o nome de ´ciência`. Jamais uma escola abusou tanto da palavra "ciência" como a proudhoniana, pois ´onde faltam os conceitos introduz-se oportunamente uma palavra.`”
Em termos caipiras, pois sou um homem do campo, permita-me dizer que a defesa cega que se faz da letra da lei em vigor sugere um estouro de boiada – daí o recurso a expressões como “fala-se” tão utilizada em sua crítica. A informação distorcida corre na campina como a personagem do escritor francês Ponson du Terrail, que “montou no cavalo e saiu galopando em todas as direções.” Querem nos impingir a fantasia de que tudo vai bem no quesito meio ambiente no Brasil. O Código Florestal em vigor seria a lei redentora da natureza, e, alterá-lo, um crime de lesa-humanidade. Nada mais falso, se a legislação atual é mais uma fábrica de delinqüentes, na figura do agricultor, que um código de desenvolvimento sustentável. Não podemos aceitar que pequenos produtores rurais sejam obrigados a repor mata nativa em propriedades há séculos exploradas, e dessa forma milhões de hectares onde hoje se plantam alimentos sejam confiscados pelo Estado. Em contrapartida, os grandes produtores têm poder de aumentar ainda mais a concentração da propriedade. Se, por fortuna improvável, fossem obrigados a conservar a reserva legal e as APPs, de uma maneira universal, que a despeito das boas intenções inatingíveis da lei atual nem sempre foram respeitadas, teriam condições de fazê-lo, enquanto os minifundiários, já estrangulados pela pequenez da área, certamente podem ter sua atividade inviabilizada por falta de terra para plantar de maneira economicamente rentável.
É de difícil compreensão a construção de seu raciocínio acerca da agricultura na Amazônia, posto que baseado na informação errada de que lá sobressaem as grandes propriedades. A maioria esmagadora das propriedades da Amazônia tem menos de quatro módulos rurais, ou seja, não mais que 400 hectares. Os latifúndios por dimensão ou exploração, para usar a terminologia oficial, são, em geral, aberrações que mais cintilam nas páginas policiais, pela forma de apropriação ilegal, seja por simples ocupação de terras devolutas, seja por grilagem. Qualquer projeto de regulação do uso e conservação da floresta deve levar em conta a saga desses brasileiros pobres, velhos e novos bandeirantes, que arribam de cantos longínquos do País para ter acesso à terra, e nela trabalham, produzem e de forma alguma podem ser confundidos, como o senhor confunde, com latifundiários ou predadores da floresta. Por isso dispensamos as pequenas propriedades de todo o País de manterem a reserva legal e, para as APPs, introduzimos marcos legais adequados, para beneficiar os pequenos produtores em cujos lotes corram riachos muito mais estreitos que a banda de proteção florestal. Os pequenos representam apenas 24,3% (ou 80,25 milhões de hectares), observando-se que 2 milhões de imóveis têm menos de 10 hectares.
Portanto, são infundadas e alarmistas as conclusões de que, dispensados da reserva legal e com APPs proporcionais, os minifundiários poderão desflorestar o território nacional. De acordo com o art. 3.º do projeto de lei, a proteção marginal vai variar do mínimo de 15 metros para os cursos d'água de menos de 5 metros de largura, ao máximo de 500 metros para os que tenham largura superior a 600 metros. Daí não ter sentido sua observação de que “entre os muitos aspectos caóticos, derivados de alguns argumentos dos revisores do Código, destaca-se a frase que diz que se deve proteger a vegetação até sete metros e meio do rio.” Na verdade, os estados poderão aumentar ou reduzir em até 50% essas faixas mínimas, desde que sigam por lei as recomendações do Zoneamento Ecológico Econômico, do Plano de Recursos Hídricos elaborado para a bacia hidrográfica e “de estudos técnicos específicos de instituição pública especializada.
Conceitualmente, cintila uma distorção palmar em suas observações de que o projeto de lei é um dos “totalmente dirigidos para os interesses pessoais de latifundiários.” Ao contrário, todo o foco de benefícios segue a direção oposta, pois privilegia os pequenos produtores, que, como está sublinhado no relatório, segundo o Censo Agropecuário de 2006, detêm 4,3 milhões dos 5,2 milhões de propriedades rurais do Brasil. Apesar de sua enorme importância, parecem invisíveis aos sábios, pois deles não se lembram nem quando consomem seu arroz, feijão, inhame, macaxeira, batata doce, abóbora, melancia ou a galinha da roça. Como diz o inesquecível governador Leonel Brizola, “essa gente acha que ovo nasce em geladeira.” Quando abordam a questão do campo, determinados especialistas só têm olhos para os “latifundiários”, os “ruralistas”, os “desmatadores”, e na sanha de a estes conter, prejudicam os pequenos produtores.
Certamente, o senhor está entre os maiores especialistas em biomas, distinguindo, em suas palavras, a “Amazônia Brasileira, Brasil Tropical Atlântico, Cerrados do Brasil Central, Planalto das Araucárias, e Pradarias Mistas do Brasil Subtropical – e de seus numerosos minibiomas, faixas de transição e relictos de ecossistemas.” Infelizmente, a lei atual só particulariza uma lei para a Mata Atlântica, e fixa percentuais de reserva legal estanques, ignorando as gritantes diferenças entre biomas, solos, ecossistemas, florestas, cerrados, caatingas, etc. Dessa forma, as metragens fixadas para as APPs resultam anticientíficas e ambientalmente incorretas. Permita-me afirmar que é uma “ilusão aristocrática” supor que as leis nacionais abarquem de forma unívoca a rica diversidade com que a natureza nos prodigalizou. Os efeitos são, antes de catastróficos, cômicos. Pela legislação em vigor, toda a pecuária do Pantanal Mato-Grossense foi posta na ilegalidade, porque o boi pantaneiro come capim nativo, e tal deglutição antipatriótica é considerada crime ambiental. Também estão fora da lei 75% dos produtores de arroz, por cultivarem a gramínea em várzeas, prática adotada há séculos nas margens dos rios, com destaque para o Amazonas. O caso do estado deste nome é, por sinal, revelador do desatino legisferante. Embora tenha uma área seis vezes maior que a do Rio Grande do Sul, o Amazonas conta menos de 10% do número de propriedades gaúchas, ou seja, pouco mais de 50 mil, e ostenta 98% do seu território coberto por vegetação nativa, de sorte, como sublinhamos no relatório, que é “mais fácil ao Amazonas cumprir a exigência de 80% de reserva legal, do que ao Rio Grande do Sul alcançar a meta de 20% da Mata Atlântica.” Mais uma vez, mesmo na área continental artificialmente definida para fins tributários como Amazônia Legal, levamos em conta as diferenças dos ecossistemas, introduzindo, no art. 14 1.º, a seguinte distinção:
“a) oitenta por cento, no imóvel situado em área de formações florestais;
b) trinta e cinco por cento, no imóvel situado em área de formações savânicas;
c) vinte por cento, no imóvel situado em área de formações campestres.”
Em resumo, nada fizemos além do que o senhor preconiza quando sugere que “em qualquer revisão do Código Florestal vigente, deve-se enfocar as diretrizes através das grandes regiões naturais do Brasil, sobretudo domínios de natureza muito diferentes entre si, tais como a Amazônia, e suas extensíssimas florestas tropicais, e o Nordeste Seco, com seus diferentes tipos de caatingas. Tratam-se de duas regiões opósitas em relação à fisionomia e à ecologia, assim como em face das suas condições socioambientais.”
Com respeito e admiração,
Aldo Rebelo